Há vida após o AVC. Áurea Lima importa-se bem menos do que os outros se o lado direito do corpo está paralisado ou se carrega 68 anos de idade. Porque ao contrário do que muitos poderiam prever há três anos, quando sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), ela renasceu.
Para acessar a casa-ateliê da artista plástica, numa ruela de paralelepípedos da Vila Mariana absolutamente embebida pelo silêncio solene da vizinhança, é preciso subir. Cerca de quinze degraus de cimento separam a porta de entrada, na rua da Mantiqueira, do reduto da artista plástica logo acima; e mais outros quinze amadeirados, no interior da casa, isolam a cozinha e a sala, dos quartos no piso superior.
Todos os dias, Áurea dispensa educadamente qualquer tentativa de apoio de outras pessoas no sobe-e-desce. Com agilidade, administra as subidas e descidas das escadas por conta própria. Nem perca tempo oferecendo a mão, só há espaço para ela – e, quando muito, para a extensão do corpo, a bengala.
Feito uma criança que, na tentativa e no erro, aprende a caminhar, falar, ler e firmar os talheres entre as mãos, ela se agarra aos pequenos desequilíbrios diários em compromisso às reinvenções determinadas para si. Mulher versada na arte e no desejo de reeditar-se, adotou o lema que define a busca pela perfeição do traço: “Um dia, eu chego lá”.
Enquanto o “lá” não chega, a artista plástica se vê às voltas com os arroubos de pintura que, após mais de um ano adormecidos, voltaram a invadi-la. E já não lhe largaram desde o final de 2011, quando o luto do AVC deu lugar à reconciliação com a arte, seara de onde Áurea nunca poderia, sequer conseguiria, escapar.
Áurea não se deixou intimidar pelo braço direito paralisado. Mais por instinto do que consciência, driblou a desvantagem quando deu voz à insistente e apressada angústia por pintar. Àquela altura, o desejo emergiu como a ânsia de um vômito. Já não importava a limitação. Foi assim que, não se sabe como, Áurea se deu conta da poderosa combinação entre o amor pela arte e a sua mais nova mediadora: a mão esquerda.
À revelia do AVC nesse meio tempo, continuou fiel ao resoluto ímpeto de alimentar novos hábitos. Assim, criou gosto por bronzear-se no terraço do quarto, mergulhar na poltrona para assistir filmes na televisão, mudar móveis e caixas de canto ou, simplesmente, perder-se no estado de transe atingido apenas quando se senta com o pincel na mão diante da tela. Somente ali, em contato direto com a arte, é capaz de ensaiar passos de bailarina, imaginar-se em meio à multidão na rua, recriar amigos e familiares, inventar shows particulares com Marisa Monte e conversar com Jô Soares. Porque pintar, para Áurea Lima, é “viajar, viajar e viajar. É motivação para eu estar bem todos os dias. Pintar é tudo”.
O desejo engavetado de dançar, feito as bailarinas que há anos rodopiam com os movimentos dos pincéis, pode ser mais um aliado à motivação diária da artista fora das telas. Questionada se a vontade antiga de dançar persiste, Áurea abrevia a primeira resposta num imediato e impensado “não”, para logo emendar, após um longo silêncio grávido de desejo: “Sim!”. A confidência verteu, mais uma vez durante a conversa, de braços dados a um dos tantos sorrisos adocicados da artista de lábios vermelhos.
Com o olhar cândido, Áurea dispensa sem sobressaltos o medo do tempo, das rugas e da morte. Prefere observar o envelhecimento no mesmo patamar da sabedoria. “Cada ano, você vai tendo novas experiências. Ficar velho é inevitável. É como a morte, a gente tem que olhar de um jeito mais humano, seja lá o que for”, ensina.
Ela curte o hoje, filosofa Cláudia. E mesmo quando impelida a se imaginar daqui a cinco anos, não hesita na resposta: “Velhinha. Muito velhinha. Pintando”.
Fonte: Portal do Envelhecimento.
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